A seguir, veja o caso clínico de um paciente submetido à transfusão maciça.
José possui 51 anos e encontra-se internado em UTI com quadro grave de Hemorragia Digestiva Alta, exteriorizado por episódios de melena e pela sonda nasogástrica aberta (1400 ml de sangue ‘vivo’ em seis horas). A dosagem de hemoglobina sérica (Hb) inicial era de 5,9 g/dL e permaneceu praticamente inalterada após ter recebido dois concentrados de hemácias. Enquanto aguardava a EDA (Endoscopia Digestiva Alta), foram transfundidos mais três concentrados de hemácias, dois plasmas frescos e um crioprecipitado.
Na EDA, foi evidenciada uma úlcera gástrica pré-pilórica com sangramento “muito ativo”, nas palavras do endoscopista. Pela dificuldade técnica, não foi possível localizar a base da lesão e a EDA não foi resolutiva. Durante o procedimento, nosso paciente recebeu mais dois concentrados de hemácias e um plasma fresco, mas continuou perdendo sangue. Enquanto aguardava a vaga no centro cirúrgico, foram infundidos mais três concentrados de hemácias, dois plasmas e um crioprecipitado. No total, foram dez concentrados de hemácias, cinco plasmas frescos e dois crioprecipitados.
Diante do exposto, consideramos que o sr José recebeu uma transfusão maciça, o que implica em consequências fisiológicas importantes! Então, quais são as principais complicações da hemotransfusão maciça e os cuidados que devemos tomar?
Complicações da Transfusão Maciça
O que é Transfusão Maciça?
Consideramos transfusão sanguínea maciça quando são infundidos dez ou mais concentrados de hemácias em 24 horas. No entanto esse conceito é limitado, uma vez que a necessidade de infusão de grande volume de hemoderivados em um curto período de tempo também provoca repercussões importantes. Por esse motivo, também consideramos como transfusão maciça a substituição da volemia do doente (4 a 5 L infundidos) ou a necessidade de três ou mais concentrados de hemácias por hora.
Quais as complicações da Transfusão Maciça?
Ao fazer uma doação, o que impede a coagulação do sangue na bolsa é a adição de citrato de sódio e de ácido cítrico. Estes componentes são injetados em grande quantidade nos pacientes politransfundidos, o que determina alcalose metabólica e hipocalemia.
1. Alcalose Metabólica
Apesar do pH ácido da bolsa de sangue (7,1), não se observa acidose no paciente politransfundido. Isso ocorre porque o metabolismo do citrato citado acima gera bicarbonato (23 mEq para cada concentrado de hemácias transfundido!). Caso o paciente tenha uma doença renal de base ou mesmo uma lesão pré-renal por hipovolemia, há redução da excreção urinária de bicarbonato e consequente acentuação da alcalose.
2. Hipocalcemia
O Citrato se liga ao Cálcio Ionizado determinando queda nos níveis séricos de Cálcio livre. Isso pode resultar em sintomas de hipocalcemia, parestesias, arritmias cardíacas etc.
3. Hipocalemia ou Hipercalemia
Em meio ao pH básico, íons de hidrogênio de dentro da célula saem para o meio extracelular em um mecanismo de compensação. Em contrapartida, íons de Potássio são interiorizados dentro da célula, provocando hipocalemia.
Por outro lado, quanto maior o tempo de armazenamento do hemoderivado, maior será a concentração de potássio extracelular da bolsa. Apesar de a hipercalemia severa por esse mecanismo ser um evento raro, vale elencar os fatores de risco: crianças e recém nascidos, devido seu baixo volume sanguíneo; doentes renais, por redução do fator protetor; politrauma grave.
4. Hipotermia e Coagulopatia Hipotérmica
A transfusão de hemoderivados refrigerados provoca queda abrupta da temperatura corporal. Estudos mostram que a transfusão de 10 concentrados refrigerados a 4°C pode reduzir a temperatura corporal em até 3°C, considerando um paciente de 70kg! Esse fato predispõe a chamada Coagulopatia Hipotérmica, uma vez que a hipotermia reduz a ligação do fator de von Willebrand às proteínas de coagulação.
5. Coagulopatia Dilucional
A reposição da perda sanguínea com cristaloides e com hemoderivados provoca diluição dos fatores de coagulação e das plaquetas, com consequente Coagulopatia Dilucional. Há redução em 10% dos fatores de coagulação para cada 500 ml de sangue transfundido. A concentração de plaquetas reduz pela metade a cada 10 concentrados de hemácias infundidos. Isso tudo somado à Coagulopatia Hipotérmica citada acima coloca nosso paciente em um cenário crítico!
Por este motivo, recomenda-se a dosagem periódica de Hb, Ht, TAP, TTPA, Fibrinogênio, contagem de plaquetas e/ou tromboelastograma durante a transfusão maciça. Quando os valores do TAP/RNI estiverem 50% pior que o exame inicial, está indicada transfusão de dois a oito unidades de plasma fresco. Quando a contagem de plaquetas está abaixo de 50.000, está indicada a transfusão de seis concentrados de plaquetas ou uma aférese, o que teoricamente aumenta a concentração plaquetária em 30.000.
Além disso tudo, o pH ácido reduz a atividade do complexo Fator Xa/Va protrombinase, o que lentifica a produção de fibrina, altera sua estrutura e aumenta a sua susceptibilidade à fibrinólise.
No Trauma é recomendada a transfusão na proporção 1:1:1 (1 concentrado de hemácias + 1 concentrado de plaquetas + 1 plasma fresco), o que tem demonstrado bons resultados nas hemorragias de grande porte.
O sr José foi para o Centro Cirúrgico! Foi realizada uma gastrectomia parcial com retirada da úlcera sangrante, provavelmente o sangue estava saindo da artéria gastroduodenal. Já no quinto dia de pós-operatório, com hematimetria estável e sem novos indícios de sangramento, o sr José recebe alta da UTI e seguirá com suporte clínico na enfermaria.
Esse texto foi baseado na seguinte referência:
- Hess JR. Massive blood transfusion. UpToDate. Published 2021. Accessed December 21, 2021.
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