O Deep Learning é uma modalidade avançada do Machine Learning, um dos subcampos da Inteligência Artificial… Esses termos complexos estão cada vez mais difundidos, inclusive dentro de pesquisas envolvendo procedimentos cirúrgicos. Por esse motivo, resolvi listar sete aplicações do Aprendizado de Máquina dentro da nossa área.
Arthur C. Clarke foi um criativo escritor de ficção científica que escreveu o conto “The Sentinel”, que deu origem a “2001, Uma Odisséia do Espaço”. Sua frase classica vem sendo citada em diversos artigos científicos sobre inteligência artificial:
Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.
Arthur C. Clarke
Será que que isso também se aplica às áreas cirúrgicas?
Para escrever esse texto, a fonte principal foi a seguinte. Recomendo leitura:
Morris MX, Rajesh A, Asaad M, Hassan A, Saadoun R, Butler CE. Deep learning applications in surgery: current uses and future directions. The American Surgeon. 2023.
Antes de prosseguir com nossa lista, vamos ver alguns conceitos iniciais sobre Machine Learning.
Qual o futuro do Machine Learning na Cirurgia?
O que é Machine Learning?
O Machine Learning (ML) ou “Aprendizado de Máquina” é o subcampo da Inteligência Artificial que desenvolve algoritmos para identificar potenciais padrões e melhorar a tomada de decisões. Dessa forma, o sistema aprende com a experiência e se aperfeiçoa de forma autônoma a cada resultado.
Já o Deep Learning (DL) ou “Aprendizado Profundo” é um subconjunto dentro do ML que cria redes neuronais artificiais (artificial neural networks) para “imitar” o cérebro humano, auto-aprendendo enquanto filtra informações complexas. Pode não parecer, mas o DL já está no seu dia-a-dia. Basta se lembrar dos assistentes virtuais (Siri, Alexa, Google Assistant), das recomendações de pesquisa e dos anúncios cada vez mais direcionados.
O vídeo a seguir ilustra uma boa explicação do machine learning e do deep learning:
Há diversas modalidades dentre do DL que se comunicam entre si para entregar um resultado mais completo. Dentre elas, precisam ser citadas a visão computacional, o processamento de linguagem natural e o aprendizado por reforço profundo.
Computer Vision (CV) ou “Visão Computacional” é a forma pela qual o computador interpreta/absorve dados de imagens.
Natural Language Processing (NLP) ou “Processamento de Linguagem Natural” refere-se ao processamento computacional da linguagem humana, permitindo assimilação e reprodução de seus detalhes e complexidades para responder perguntas, criar diálogos, traduzir textos, redigir conteúdo, dentre outras aplicações. Veja também: Há espaço para o ChatGPT na Cirurgia?
Deep Reinforcement Learning (DRL) ou “Aprendizado por Reforço Profundo” é o meio pela qual uma máquina usa feedbacks e recompensas para treinar e melhorar seus resultados.
O avanço do DL levou ao aperfeiçoamento exponencial do reconhecimento de imagens e de ações humanas, o que abriu portas para avanços na medicina, principalmente nos diagnósticos. Mas, e na nossa prática cirúrgica?
7 Aplicações do Machine Learning na Cirurgia
Dados são coletados a todo momento durante a trajetória do paciente: a anamnese e o exame físico da primeira consulta, as descrições cirúrgicas e de procedimentos, os registros de complicações pós-operatórias, os registros das consultas de pós-operatório tardio… O ML é alimentado com essa rica e complexa fonte de informações para aprender e entregar previsões cada vez mais precisas e auxiliar o cirurgião na tomada de decisões.
1. Insights na Videolaparoscopia
A videolaparoscopia possui um rico conjunto de dados visuais. Os modelos de DL usam a visão computacional para identificar pontos de referência anatômicos, zonas críticas de dissecção e ações de instrumentos. Com auxílio do NLP, são criados rótulos para descrição e documentação de vídeos cirúrgicos, o que possui aplicação na avaliação de competências cirúrgicas, formação padronizada de residentes e segurança dos pacientes.
Como exemplo, durante as colecistectomias videolaparoscópicas, foram utilizados modelos de DL para exibir mensagens e sugestões da visão crítica de segurança e do Triângulo de Calot.
Veja o seguinte artigo científico: Lopez-Lopez V, Maupoey J, López-Andujar R, et al. Machine learning-based analysis in the management of iatrogenic bile duct injury during cholecystectomy: a nationwide multicenter study. J Gastrointest Surg. 2022.
2. Refinamento da Cirurgia Robótica
Além dos dados visuais complexos, os procedimentos assistidos por dispositivos mecatrônicos (cirurgia robótica) capturam uma gama de dados cinemáticos, ou seja, os movimentos realizados pelo cirurgião. Enquanto a CV assimila os marcos anatômicos e os pontos críticos, o DRL assimila e aprende com os gestos cirúrgicos. Dessa forma, o DL promove o refinamento dos movimentos realizados pela máquina, abrindo caminho para a cirurgia robótica semiautônoma ou autônoma.
O vídeo abaixo traz um exemplo de movimentos autônomos realizados por um robô por meio do DL.
O vídeo acima é material suplementar do artigo: Shin C, Ferguson PW, Pedram SA, Ma J, Dutson EP, Rosen J. Autonomous tissue manipulation via surgical robot using learning based model predictive control. In: 2019 International Conference on Robotics and Automation (ICRA). IEEE; 2019.
3. Diagnósticos e Procedimentos Ortopédicos
Modelos de inteligência artificial foram desenvolvidos para interpretar exames de imagem e reconhecer anomalias, o que possui aplicação em áreas como ortopedia e trauma. Quando comparados aos especialistas humanos, os modelos de DL apresentaram acurácia semelhante ou até maior para detecção de fraturas ósseas e de implantes ortopédicos.
Há relatos de que a tecnologia pode ajudar a melhorar a precisão e a velocidade do diagnóstico, sinalizar os pacientes mais críticos e urgentes para atenção imediata, reduzir erros humanos.
Veja o artigo: Lalehzarian SP, Gowd AK, Liu JN. Machine learning in orthopaedic surgery. WJO. 2021
4. Segurança dentro da Neurocirurgia
Dentro da neurocirurgia, as técnicas de visão computacional vêm sendo validadas para auxiliar as ressecções transesfenoidais de adenoma hipofisário. A identificação rápida dos pontos críticos podem evitar lesões em estruturas como a artéria carótida ou o pedúnculo hipofisário.
Além disso, há relatos de benefícios da AI também no pré e no pós-operatório dos pacientes.
Veja o artigo: Iqbal J, Jahangir K, Mashkoor Y, et al. The future of artificial intelligence in neurosurgery: A narrative review. Surgical Neurology International. 2022.
5. Indicações em Cirurgia Plástica e Reconstrutiva
O aprendizado de máquina permitiu o desenvolvimento de modelos para predizer desfechos e avaliar possíveis candidatos à procedimentos de queimaduras, craniossinostose, blefaroplastia, rinoplastia e cirurgias ortognáticas.
Os criadores do aplicativo DL4Burn criaram um modelo baseado em ResNet5025 para auxiliar a tomada de decisões relacionadas a queimaduras, indicando ou não determinadas abordagens cirúrgicas.
Veja o artigo: Rambhatla S, Huang S, Trinh L, et al. Dl4burn: burn surgical candidacy prediction using multimodal deep learning. AMIA Annu Symp Proc. 2022
6. Diagnóstico e Tratamento Cirúrgico de Câncer
O uso dessas novas tecnologias prometem a criação da chamada “biópsia digital”, gerando uma classificação instantânea da região acometida pelo tumor. Além disso, a AI pode gerar um mapa 3D preciso da massa tumoral, auxiliando os cirurgiões no planejamento cirúrgico. Se acoplada à robótica comentada anteriormente, pode trazer ainda mais exatidão e segurança.
Veja também: Thomas DJ, Singh D. Applications of artificial intelligence and deep learning in colorectal cancer surgery – Correspondence. International Journal of Surgery. 2022.
7. Avaliação dos Riscos Perioperatórios
Os dados de prontuários eletrônicos são úteis para reconhecer e predizer complicações pós-operatórias e mortalidade perioperatória. O Processamento de Linguagem Natural vem sendo usado para gerar uma análise automatizada desses registros, identificando complicações pós-operatórias com uma sensibilidade de 92% e especificidade de 99%. Isso pode ser útil para tomada de decisões dentro e fora do centro cirúrgico.
O seguinte artigo da Nature mostra que é possível criar um modelo de aprendizado de máquina que prevê o risco de mortalidade intra-hospitalar pós-operatória com precisão suficiente para superar os escores tradicionais!
Veja o artigo: Graeßner M, Jungwirth B, Frank E, et al. Enabling personalized perioperative risk prediction by using a machine-learning model based on preoperative data. Sci Rep. 2023.
Veja também: Cirurgiões são Médicos! Não apenas técnicos
Mas, e o Cirurgião? Vai perder espaço?
Todas essas inovações supracitadas pode assustar, ainda mais quando falamos em procedimentos cirúrgicos autônomos. Mas não é por aí.
Robôs e máquinas não possuem a intuição ou o “sexto sentido” do cirurgião. Empatia e o toque humano são características insubstituíveis que são fundamentais para o relacionamento médico-paciente e têm um impacto significativo na recuperação e no bem-estar dos pacientes.
Implementar sistemas de IA avançados e robôs cirúrgicos requer investimentos significativos em infraestrutura e treinamento, o que é desafiador para muitas instituições de saúde. Questões relacionadas à privacidade, segurança dos dados e responsabilidade por decisões tomadas por algoritmos são complexas e devem ser cuidadosamente abordadas.
É inegável que o avanço da tecnologia está acelerando e impactando todas as áreas da medicina. A Inteligência Artificial e o Machine Learning podem ser poderosas ferramentas para auxiliar os profissionais de saúde em diagnósticos precisos, otimização de tratamentos e até mesmo em procedimentos cirúrgicos assistidos.
O Cirurgião é um ser humano insubstituível e deve saber usar as novas tecnologias para benefício do seu paciente.
Bônus: Conferência MIT Sloan
O vídeo abaixo é uma mesa redonda sobre Machine Learning, Câncer e Cirurgia. São apresentadas várias aplicações que auxiliam as tomadas de decisões, bem como uma rica discussão sobre o tema que você leu acima.