O Causo do Dinossauro: ATLS e Atendimento Inicial ao Politrauma

E se chegasse no PS um paciente atacado por Dinossauro? Como seria o atendimento inicial de acordo com o ATLS? Vamos exercitar conceitos!

Carlos foi admitido no PS às 14h00, via transporte aéreo pelo Corpo de Bombeiros local. Pálido, recoberto por sangue e lama, com uma voz trêmula e assustada, sussurrava repetidamente “dinossauro, dinossauro, dinossauro”. Tratava-se de um politrauma grave, com vários ferimentos torácicos, abdominais e um foco de sangramento aparentemente ativo advindo da parte direita do tórax. O mecanismo do trauma envolveu, nada mais nada menos, um DINOSSAURO, segundo a equipe de resgate!



O Causo do Dinossauro - ATLS e Atendimento Inicial ao Politrauma
Montagem utilizando a cena do filme Jurassic Park de 1993 e a capa do ATLS 10ª Edição

Isso mesmo, vamos imaginar essa cena aleatória e descontraída para aplicar alguns conceitos importantes do ATLS, em especial o Atendimento Inicial ao Politrauma.

Avaliação Primária: ABCDE de acordo com o ATLS

Nosso paciente foi trazido pela equipe de resgate sob protocolo de trauma, com um acesso periférico calibroso no membro superior direito, o colar cervical, a prancha rígida e a cinta pélvica.

Os passos a seguir foram feitos quase que simultaneamente.

A. Vias Aéreas e Coluna Cervical

Carlos estava conversando e mantendo as vias aéreas pérvias. Entretanto, parecia desorientado e com potencial rebaixamento do nível de consciência, necessitando de constante reavaliação. Queixou-se de dor durante palpação e movimentação passiva da coluna cervical. Mantivemos o colar cervical até a realização dos exames de imagem, tendo em mente uma possível lesão. Considerando isso, prosseguimos com a manobra de Jaw-Thrust para elevação da mandíbula e melhor manutenção das vias aéreas.

B. Ventilação

Apesar da boa patência de vias aéreas, nosso paciente estava saturando mal (86%), taquipneico (FR 26), com respiração ruidosa e desconforto respiratório importante.  Instalamos uma máscara de O2 obtendo uma melhora parcial da oximetria.

Podiamos observar um curativo de três pontas no hemitórax direito, instalado durante o pré-hospitalar. Após retirado, observamos um “rasgo” de 3 cm lateral ao mamilo direito, com extravasamento borbulhante de sangue em moderada quantidade. Como o diâmetro era maior do que ⅔ do diâmetro traqueal, o ar estava entrando com maior facilidade por ali, o que nos coloca diante de um pneumotórax aberto!

Foi instalado um dreno torácico N° 32 com selo d’água a um espaço intercostal abaixo do ferimento, na linha axilar anterior. Em seguida, foi colocado um curativo provisório para impedir o fluxo de ar pela ferida. De imediato, foram drenados 230 mL de conteúdo hemático. Uma reavaliação constante deste dreno também se fez necessária.

C. Circulação

Carlos estava instável do ponto de vista hemodinâmico. Mal perfundido, pálido, com tempo de enchimento capilar maior do que 2 segundos, pressão arterial de 91 x 79 mmHg (convergindo) e frequência cardíaca de 115 bpm. Estávamos diante de um Choque Hipovolêmico Classe III, sendo estimada uma perda sanguínea até o momento entre 1500 e 2000 mL!

Para interromper o sangramento advindo do tórax, pensando em parede torácica, inserimos uma Sonda Foley pelo orifício penetrante, enchemos o balonete e pressionamos contra a parede. Houve interrupção do sangramento, aparentemente sem aumento do débito do dreno torácico.

Iniciamos de imediato a ressuscitação volêmica com 1L de cristalóide aquecido e hemoderivados. Utilizamos a proporção de 1:1:1 (1 concentrado de hemácias para 1 de plasma-fresco para 1 de plaquetas), visando reduzir os riscos de coagulopatia e trombocitopenia. Inicialmente houve boa resposta hemodinâmica, com normalização da PA e redução da FC.

Carlos sangrou… Por onde mais? Bom, já sabíamos que tinha um sangramento torácico. Além disso, durante o exame, podíamos observar um abdome com escoriações defesa e doloroso durante palpação dos quadrantes superiores. Já desconfiamos de um trauma abdominal fechado. Esplênico? Hepático?

Foi instalada uma sonda vesical de demora para acompanhamento do débito urinário e ajuste individualizado da reposição volêmica.

D. Disability

Durante a avaliação da função neurológica do nosso doente, observamos que ele apresenta abertura ocular somente após estímulo sonoro (3 pontos). Como na admissão, ele continua pronunciando repetidamente a mesma palavra (3 pontos). Apresenta movimentação ativa na maca, apesar de descoordenada, e determina bem a localização dos estímulos táteis (5 pontos). Isso totaliza 11 pontos na Escala de Coma de Glasgow (ECG). Além disso, podemos acrescentar à essa escala a avaliação pupilar. Ambas as pupilas do Carlos reagem simetricamente aos estímulos luminosos. Portanto, a ECG-P também é de 11 pontos.

Assumindo que possa ter tido impacto craniano nesse acidente, consideramos um Traumatismo Cranioencefálico Moderado, ou seja, se faz necessária uma Tomografia de Crânio.

E. Exposure

Neste momento, despimos o paciente em sua totalidade e avaliamos todas as lesões. As principais são: 

  • Trauma penetrante no tórax à direita;
  • Crepitação com perda da integridade da perna direita, sem exposição óssea (possível fratura);
  • Diversas escoriações pelo corpo: fronte, tórax à esquerda, dorso, abdome, região lombo-sacra, membros inferiores e membros superiores.

Ao retirar a prancha rígida, com movimentação em bloco do paciente, avaliamos a coluna. Apesar de não estarem evidentes sinais de lesão, optamos por manter a movimentação em bloco cautelosa até a realização dos exames.

Carlos está totalmente exposto e frio (35 °C)! Lembre-se que a hipotermia provoca a coagulopatia que perpetua a hemorragia, levando à acidose metabólica e à hipoperfusão tecidual. Tudo isso está no cerne do que chamamos de Tríade Letal do Trauma. Portanto, ao aquecermos nosso paciente, estamos um passo à frente na luta contra esse ciclo vicioso que leva à morte.

Avaliação Secundária de acordo com o ATLS

Agora que já fizemos a primeira avaliação de acordo com o ATLS, alcançando uma estabilização relativa, podemos avançar na investigação. Na avaliação secundária, podemos rapidamente já direcionar outras condutas.

eFAST

Estamos diante de um Choque Hipovolêmico, provavelmente hemorrágico. Precisamos saber o local do sangramento. Uma das “cartas na manga” que temos é o eFAST (Extended Focused Assessment with Sonography for Trauma).

Antes de realizar, vamos nos lembrar dos possíveis focos de sangramento: tórax, abdome, retroperitônio, pelve e fratura de ossos longos. Dessas, temos duas grandes suspeitas:

  • Tórax: apesar da abordagem inicial, precisamos ficar atentos ao débito do dreno torácico. Se ultrapassar 200 mL em 2h, já podemos indicar a toracotomia. O eFAST vai nos ajudar também na avaliação do lado contralateral, afastando ou não hemotórax e/ou pneumotórax neste lado.
  • Abdome: Há diversos sinais de possível trauma abdominal fechado. Precisamos do FAST para ver se há líquido livre na cavidade. Se sim, vamos indicar a Laparotomia.

O eFAST foi realizado: constatamos moderada quantidade de líquido livre na cavidade peritoneal (espaços de Morrison, esplenorrenal e pélvico). Não foram observados derrame pleural ou sinais de pneumotórax à esquerda.

Apesar da boa resposta com a reanimação volêmica, foi  considerado alto risco de piora clínica nos próximos minutos. Foi então indicada a Laparotomia Exploradora e o paciente seguiu para o Centro-Cirúrgico. 

Mnemônicos AMPLA e MIST

Enquanto o paciente subia para o centro cirúrgico, parte da equipe ficou para coletar mais informações com a família e com a equipe de resgate. Para isso, foram utilizados dois mnemônicos. O primeiro, foi o AMPLA: 

  • A [alergias]: Não relatadas alergias.
  • M [medicações]: Referido uso de Losartana.
  • P [patologias]: Referida HAS como única comorbidade.
  • L [“líquidos”]: A última refeição foi o almoço (há 2 horas da admissão).
  • A [ambiente]: O incidente ocorreu em uma zona de proteção ambiental, próxima à cidade.

O segundo foi o MIST: 

  • M [mecanismo]: Segundo testemunhas, o tal do Dinossauro mordeu tórax direito, lançou Carlos contra uma árvore e pisou em sua perna direita. Alguns perceberam impacto entre a cabeça do paciente e o solo.
  • I [injúria]: Informantes referiram perfuração do tórax, batida do tórax e do abdome contra a árvore e possível fratura da perna direita. Todas essas lesões foram avaliadas na avaliação primária.
  • S [sintomas]: Dor, dispneia e Rebaixamento do Nível de Consciência.
  • T [transporte]: Durante o transporte, foram administrados 1L de Ringer Lactato e 1 g de Ácido Tranexâmico.

Reavaliação do ABCDE

Enquanto o paciente seguia para o Centro Cirúrgico, foi realizada outra reavaliação, nos moldes do que preconiza o ATLS:

  • A – Vias aéreas permaneceram pérvias. 
  • B – Mantendo boa oximetria (95%), com máscara de O2 a 3L/min, com melhora do desconforto respiratório (FR de 21 irpm). Dreno torácico funcionante, com escape aéreo e com conteúdo hemático com fluxo de 70 mL em 1 hora (ainda não indicada a toracotomia).
  • C – hemodinamicamente instável: PA limítrofe (105 x 74 mmHg); taquicárdico (FC de 109 bpm). Paciente já está na sala de cirurgia para realização da Laparotomia.
  • D – Permanece estável, ECG-P continua com 11 pontos.
  • E – Sem alterações até então.

Conclusão

O objetivo deste texto foi, além de entreter, ressaltar a importância da sistematização do atendimento ao trauma. Você nunca vai estar diante de um paciente com o mecanismo de trauma acima. Mesmo assim, o ATLS é capaz de traçar um Norte que determina condutas diretas e resolutivas.


Referências:



João Elias

João Elias

Médico pela Universidade Federal de Goiás. Cirurgião pelo Hospital Alberto Rassi. Residente de Cirurgia de Cabeça e Pescoço no Hospital do Câncer Araújo Jorge. Ilustrador Médico com foco em Anatomia e Cirurgia. Fundador e mantenedor do Café Cirúrgico.

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