O que é sentir medo? Dia do Trabalho

Por que precisamos reconhecer e lidar com o medo dos nossos pacientes? Nesse Primeiro de Maio, veja a história de um trabalhador braçal que sentiu medo.

Hoje é Primeiro de Maio, dia do trabalhador. Resolvi escrever sobre a história do sr N, um trabalhador braçal de 62 anos que certa vez descobriu o que é sentir medo a duras penas. Precisamos aprender a reconhecer e a cuidar desse tipo abstrato e angustiante de dor. É uma missão médica aprender a lidar com gente como ele.



O que é sentir medo? Dia do Trabalho

Alguém que não teve o direito de ter Medo

Desde criança, N foi ensinado a laçar novilhas, a tirar leite e a domar cavalos bravos. Aos doze, já tinha aprendido a bater pasto e a usar a foice para cortar a cana que alimentava o gado. Na adolescência, saiu várias vezes com espingarda e cães de caça para matar onças que ameaçavam sua produção. Casou-se cedo e mal passou alguns anos para ter que dar o suor para sustentar quatro seres humanos. Já repreendeu ladrões em sua chácara, na base dos gritos. Foi ensinado a nunca temer nada. Afinal, ele era o homem da casa.

De tanto fumar para espantar os mosquitos, pegou gosto pela coisa. Em certas temporadas, chegou a fumar até 40 cigarros por dia! Afinal, era coisa de Macho. Ainda mais quando acompanhado daquela dose trincada de gelada e uma divertida rodada de sinuca com os amigos no final de uma empreitada. Era uma recompensa.

Um certo dia, veio uma rouquidão discreta, porém desagradável. Como uma leve irritação na garganta. Mas nenhum dos seus chás caseiros curaram esse sintoma, que por sinal piorava dia após dia.

Após breves oito meses, N não tinha mais o “fôlego” de outrora. Ao subir no cavalo, já ficava ofegante. Não conseguia mais correr para curar um bezerro. Quem dirá pegar aquele franguinho para o almoço… A pior hora era de noite. Quando deitava, a garganta se afunilava, se fechava. A respiração ficava ainda mais ruidosa e logo tinha que levantar-se. O sr N estava dormindo sentado há dias.

Pouco depois, veio a dificuldade para se alimentar. O tão esperado churrasco do fim de semana já não descia como antes. Agora o que o mantinha era uma sopinha lá e outra cá. Nada muito prazeroso, apenas o necessário (às vezes nem isso).

O sr N nunca tinha ido ao médico. Até que foi no postinho de saúde da cidade. Lá, um clínico geral recém formado solicitou uma videolaringoscopia. Quando mostrou o exame, veio a surpresa: “Sr N, isso pode ser um Câncer de Laringe. Vou encaminhá-lo para um cirurgião de cabeça e pescoço”.

O Medo aparece à espreita

Mesmo não confiando no médico principiante, N protocolou o encaminhamento na Secretaria de Saúde e foi chamado para a consulta. N apareceu com o seu fiel escudeiro nas mãos, o chapéu. E é claro, sua esposa (que por sinal cuidava dele como ninguém)… O cirurgião alertou que as chances de se tratar de um câncer maligno das pregas vocais era muito grande. Para confirmar, foi solicitada uma biópsia. Disse ainda que a falta de ar poderia piorar ainda mais. Se isso acontecesse, N deveria ir para o hospital às pressas.

Assim aconteceu. Após duas semanas, sr N ficou literalmente sem ar. Sua respiração ficou mais ruidosa. Parecia que o ar estava entrando e saindo dos pulmões pelo orifício de uma agulha de injeção. N achou que iria partir.

Mal deu tempo de chegar no hospital e uma traqueostomia de urgência foi realizada pela Equipe de Cabeça e Pescoço. O problema respiratório foi resolvido, mas às custas de uma cânula metálica no pescoço, algo que ofuscou sua voz. N sempre foi um homem de poucas palavras, mas sentiu o baque. Não voltaria a falar como antes.

Semanas depois, a biópsia foi realizada e as tomografias de estadiamento ficaram prontas. N tinha um Câncer de Laringe com indicação de laringectomia total seguida de radioterapia adjuvante. Tudo com proposta curativa. Demorou um tempo até N tentar compreender a gravidade da doença e o porte da cirurgia.

Mas naquele momento, N estava fraco. Perdeu 20Kg nos últimos oito meses. Era preciso uma via alimentar melhor para oferecer um aporte nutricional pré-operatório. Claro que oferecemos uma sonda nasoentérica, ou quem sabe uma gastrostomia. N tentou, mas não segurou a lágrima. “Ainda consigo! Ainda quero tentar me alimentar pela boca”. Assim, recusou os procedimentos indicados. 

Tudo foi muito rápido… Estávamos falando em retirar a laringe, colocar sondas, cuidar de um perioperatório complexo… N ainda estava tentando processar aquela rouquidão do início. Estava pensando em quem iria cuidar das suas coisinhas e quem iria sustentar a sua família.

O Medo de perder Autonomia

Esse é o tipo de paciente que nunca vai falar que tem medo ou que tem dor forte. Afinal, N foi ensinado desde pequeno que Homem da Roça não tem medo de nada! Mas N estava com o medo escancarado nos seus olhos, apesar do seu esforço para esconder. Como é difícil para ele ter sua autonomia abalada de forma tão drástica e repentina. Isso sem ao menos saber o que lhe reserva o futuro.

Na verdade, N é o paciente humilde com o qual médicos como nós (oncologistas ou não) lidamos diariamente. Uma interpretação desafiadora para além da indicação terapêutica.

Por vezes, mesmo inconscientemente, os taxamos como fumantes e alcoólatras inconsequentes e até irresponsáveis (tigrões) por não irem ao hospital. Realmente são pacientes difíceis de lidar. Mas lembre-se de que há toda uma arquitetura social e familiar complexa que os moldaram desta forma. Veja também o texto: Não quero ir pro Hospital, Dr! Pessoas morrem lá.

É preciso reconhecer o medo no olhar de quem não teve o direito de ter medo. Isso é um tipo peculiar e angustiante de dor que precisa ser tratada. É preciso saber cuidar de gente como o sr N. Pessoas que foram criadas para carregar o Brasil nas costas, custe o que custar.

“Deus dá as batalhas mais difíceis aos seus melhores soldados” Papa Francisco

Confira também o texto A Medicina e a Esperança Equilibrista. Claro que eu não poderia deixar de recomendar o livro Mortais, de Atul Gawande.

Feliz Dia do Trabalho!



João Elias

João Elias

Médico pela Universidade Federal de Goiás. Cirurgião pelo Hospital Alberto Rassi. Residente de Cirurgia de Cabeça e Pescoço no Hospital do Câncer Araújo Jorge. Ilustrador Médico com foco em Anatomia e Cirurgia. Fundador e mantenedor do Café Cirúrgico.

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